Mãe é mãe
"Não é carne nem o sangue, é o coração que nos faz pais e filhos", escreveu o filósofo alemão Friedrich Schiller. A seguir, histórias de mulheres que adotaram crianças mais velhas, enfrentaram os desafios da decisão - e mostraram que mãe de verdade é a que tem amor para dar
O desejo de formar uma família, de educar e de acompanhar o desenvolvimento de uma criança, às vezes, resulta em um processo de adoção que envolve um caleidoscópio emocional. Principalmente quando a criança já é um pouco mais velha - ou pelo menos crescida o suficiente para ter algum repertório. Na maioria das vezes, o novo filho chega moído pelas dores do abandono. Eventualmente, chega com traumas de maus-tratos. É um drama tão naturalmente cinematográfico que volta e meia o cinema recorre a ele. O filme Ensinando a Viver (2007), por exemplo, é inspirado no conto de David Gerrold, escritor americano que adotou um menino de 8 anos e narra a saga pessoal de um pai para garantir segurança ao filho. "Sean foi abandonado com 1 ano e meio. Já havia passado por oito abrigos. No dia em que fui conhecê-lo, disseram sem rodeios que ele não seria uma criança fácil de ser educada. Tinha sofrido abusos emocionais. Mas eu o vi como um menino desesperado para ter um lar seguro", disse Gerrold a LOLA, em um resumo perfeito do desafio doméstico que envolve essa decisão. E, justamente por isso, encarar a missão de adotar um filho já crescido ainda é arranjo incomum. No Brasil, a preferência pelos bebês e crianças menores é avassaladora. Dos 26 736 inscritos no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), 78% (20 775) desejam crianças de até 4 anos. Acima de 3 anos, elas são enquadradas na categoria "adoção tardia". Alguns assistentes sociais e psicólogos defendem o fim do termo, por entender que ele reforça o preconceito em relação às crianças maiores. Mas o fato é: preconceito ou não, há um desafio pela frente. Mães e pais aprenderão a ser mães e pais, as crianças terão de se adequar a uma nova realidade. Muitas vezes não dá certo. Toda adoção, quando promulgada, é irrevogável - portanto, a lei não permite a devolução da criança após a sentença. Mas existe um período inicial, o estágio de convivência, em que é possível fazer a "restituição".
Qualquer caso de devolução é acompanhado pela Justiça - e a guarda só pode voltar para o Estado nos casos em que fica evidente o risco de a criança permanecer em um núcleo familiar que a rejeita. É, obviamente, uma situação de alta voltagem dramática. Autora de uma dissertação sobre o tema, defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a psicanalista Maria Luiza Ghirardi elenca as principais causas que desembocam em um final infeliz. Há as expectativas extremadas, impossíveis de cumprir, em relação à adoção. Há as dificuldades de lidar com a origem da criança. Há a adoção motivada por sentimentos equivocadamente altruístas, para "salvar" aquela criança. Há a dificuldade de sentir a criança como filha. E, finalmente, há a dificuldade de lidar com a infertilidade. "As devoluções ocorrem sem que necessariamente fiquem restritas à adoção tardia. Há casos em que a criança foi adotada ainda bebê e devolvida na adolescência", conta ela. Mas nem tudo são relatos sombrios. Há muitas histórias de pais que começam querendo um bebê e, ao conhecer a realidade dos abrigos, optam por uma criança grande. Apesar de todos os conflitos, a convivência se ajeita com o tempo, como mostram os quatro depoimentos a seguir.
Luciana Marques, 40 anos, administradora de empresas
"Casei em 2000, mas não quis ter filhos imediatamente, quis priorizar meu casamento e minha carreira. O desejo de ser mãe surgiu só cinco anos depois, mas não consegui engravidar. Tentei técnicas de fertilização várias vezes sem sucesso - e a ideia da adoção foi amadurecendo. De cara, eu sabia que não queria um bebê: não me imaginava com ele nas mãos, trocando fraldas, passando noites em claro sem saber o que ele está sentindo. Mas também não me imaginava adotando três crianças, como aconteceu: Alexandre, de 10 anos, Thaiane, de 8, e Kaio, de 3. Pensava, no início, em adotar uma criança de até 4 anos, mas tudo mudou nos três anos que levou da entrega dos documentos à aprovação da habilitação da Vara da Infância e Juventude. Li muito e passei a frequentar um grupo de apoio. No abrigo, vi que as crianças maiores também poderiam me chamar de mamãe, que precisam de atenção, afeto, amor. Ali, vi a possibilidade de formarmos uma nova família.
Em fevereiro de 2009, chegaram meus filhos. No primeiro mês, quase pirei. Eles não confiavam na gente, nos testavam o tempo todo. Se a própria família biológica não os protegeu, e essa era a única referência familiar que tinham, como confiariam em dois adultos desconhecidos? Isso sem falar no brutal choque cultural. Os dois maiores não sabiam os dias da semana, os meses do ano, a própria data de aniversário. Não eram alfabetizados, não tinham as vacinas obrigatórias. Nunca tinham ido a um dentista ou médico. Meu filho mais velho acordava às 5 da manhã para comer o que encontrasse na cozinha e na geladeira (frutas, iogurtes, queijo, bolo etc). Tinha medo de que a comida acabasse. Não adiantava explicar que depois faríamos novas compras. A escola também não foi fácil. Antes de matriculá-los , começamos a dar aulas para eles, especialmente minha mãe, professora aposentada. Quando a Thaiane errava alguma coisa, se enfiava embaixo da mesa, chorando. A autoestima dela era tão baixa que não se permitia errar.
Hoje, os dois mais velhos estão alfabetizados, têm um ótimo comportamento na escola, tiram boas notas, são considerados inteligentes e aplicados. Fazem curso de reforço escolar e inglês. Meu marido é economista e dá aulas de matemática para eles. O caçula não falava, era praticamente mudo. Hoje, ele é uma criança encantadora e um tagarela sem igual. Às vezes, preciso falar para ele parar um minuto e respirar. A mudez era uma forma de defesa diante dos traumas que viveu.
Nós cinco fazemos terapia desde o primeiro dia. Também acompanhamos as reuniões no Grupo de Apoio à Adoção Quintal da Casa de Ana, em Niterói, com outros pais. Devagar como deve ser, eles estão tirando a diferença emocional, cultural. Não existe fórmula mágica para lidar com essa situação, é um desafio que exige paciência e muito amor. Foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. Não consigo me ver sem os meus filhos. Não nasceram de mim, mas com certeza nasceram para mim."
"Depois de uma ‘gravidez’ de 3 meses, gêmeos"
Glaucia Regina Levendoski, 39 anos, advogada
"Logo após o casamento, eu e meu marido já pensamos em ter nossos filhos. Poucos meses depois, descobrimos que não poderíamos gerar, naturalmente, um bebê.Descartamos as técnicas reprodutivas e decidimos pela adoção. Meu marido queria apenas uma criança, mas eu sonhava com pelo menos duas. Foi uma negociação antes de preenchermos os dados para dar entrada ao processo, mas ele aceitou a ideia de gêmeos. Ainda não havia o Cadastro Nacional de Adoção, por isso tive de mandar cópias de nossa habilitação para comarcas de todo o país. Trocava e-mails em blogs, conversava com pessoas, frequentava encontros sobre adoção.
Meu único problema foi não saber quanto tempo duraria minha ‘gravidez’. E se preparávamos um quarto para um ou dois bebês ou para uma ou duas crianças. Não sabia se comprava um berço ou uma cama... Um belo dia, recebemos uma ligação do fórum: um casal de gêmeos de 3 anos e meio estava entrando em processo de adoção. Fui ser mãe de uma hora para outra de Fernanda e Fernando. Do dia para noite, passamos da condição de um casal para uma família. Minha ‘gestação’ foi de apenas três meses, do processo de habilitação à chegada de nossos filhos. Eles, praticamente, não conheciam nada além do abrigo. Ficavam impressionados até com o portão elétrico de casa. Na primeira vez que fomos ao cinema, se assustaram com o barulho.
Apesar desses estranhamentos, eles chegaram praticamente adaptados. Em nenhum momento me senti insegura. Hoje, estão com 6 anos de idade. Brincam, estudam, brigam, se alegram, se entristecem, como todos as outras crianças da idade deles. Deixei de ter uma casinha arrumada para ter uma casa feliz!"
"Eu tinha medo, as crianças também"
Mariana Martins, 33 anos, analista financeira
"Minha vontade de ser mãe era grande, sonhava em ter um filho biológico e um adotado. Após cinco anos tentando engravidar, chegando a me submeter à técnica de inseminação artificial, decidimos realizar o desejo da adoção. Preenchemos o cadastro, informando que não tínhamos restrições em relação ao sexo e à raça, mas queríamos crianças de até 1 ano de idade, e irmãos, só se fossem gêmeos.
Com o tempo e as experiências trocadas nos grupos de apoio à adoção, entendemos que não é essa a realidade dos abrigos do país. Fomos ao fórum e modificamos nosso cadastro: aceitávamos crianças maiores de 2 anos e com irmãos de até 7 anos. Chegamos a lidar com a frustração de nos empolgar com três irmãos no Rio de Janeiro, adoção que não deu certo por questões judiciais. Após um mês, nova ligação do fórum. Receando uma nova decepção, fomos, num sábado de 2009, conhecer duas irmãs: a mais velha, de 6 anos, e a caçula, de 3. Nos apaixonamos por elas. Passamos o domingo juntos e, na noite da segunda-feira, elas já estavam morando em casa, sem ‘estágio’, sem nada!
De repente, me vi totalmente despreparada. Não tínhamos cama, chupeta, mamadeira, fraldas, roupas... Fiquei alucinada, perdida. As meninas chegaram com piolhos. Não fazia a menor ideia do que fazer! Minha mãe veio me ajudar, eu me senti muito insegura. Medo era o sentimento mais presente. Medo de não dar certo, de elas não gostarem de mim, de minha relação com o marido estar mudando, do futuro... Compramos iogurtes e todas as guloseimas que as crianças adoram. Mas elas nunca tinham visto nada parecido, estranhavam tudo. Acabei tendo de jogar fora muita coisa. A menor chamava a maior de mãe. E a maior não agia como uma criança, tinha medo de brincar. O papel dela, até então, era cuidar da irmã. Um dia, a caçula fez cocô no biquíni, ela pegou-o na mão e o escondeu. Morria de medo que eu ficasse brava e não quisesse mais ficar com elas. Fazia tudo para nos agradar.
Fomos mostrando e dando a segurança para elas de que tudo estava dando certo. No começo, a maiorzinha não aceitava carinho, não conseguia de jeito algum dar um abraço, um beijo em mim e no pai. Só com o passar do tempo despertou a verdadeira menina, que é carinhosa, meiga, sensível e sempre alto-astral. Ela não sabia ler nem escrever. Levamos um mês para decidir o que faríamos. Foi complicado achar uma escola, pois ela estava atrasada em relação às outras crianças da mesma idade. Mas as duas sempre foram muito educadas. Sei dizer que está sendo a melhor experiência de nossas vidas. Amadurecemos e nos sentimos extremamente felizes com essa oportunidade de cuidar dessas joias que estão conosco."
"Tô tão apaixonada por você"
Maria Rita Serrano, 42 anos, bancária
"A adoção da minha filha foi um processo natural - foi paixão à primeira vista. Em 2001, eu era vice-prefeita e secretária da área social de Rio Grande da Serra, na Grande São Paulo. Sob minha responsabilidade, estava o abrigo para crianças em situação de risco. Naquele ano, a Diana, de 1 ano e meio, foi abrigada, após o conselho tutelar encontrá-la abandonada na rua. Foi um caso muito especial. Ela chorou muito nos primeiros dias e se recusava a ficar com as cuidadoras. Tivemos de deslocar um guarda municipal para cuidar dela. Depois, soubemos que esse comportamento era decorrente dos maus-tratos da progenitora e dos cuidados que ela recebia de um morador de rua, por quem criou um forte vínculo afetivo.
Passados alguns meses, pedi autorização da juíza da Vara da Infância para poder levá-la para passear nos fins de semana. Eu estava no início de uma gestação, mas perdi o bebê. Em 2003, engravidei e, pela segunda vez, perdi o bebê, o que só fez aumentar meu desejo pela adoção da Diana. Quando ficou claro que a paixão era mútua, entrei com o pedido de guarda e o processo de adoção, efetivado cinco anos depois. Um dia, perguntei se ela gostaria de morar conosco e a resposta veio com um sorriso e a frase: ‘Tô tão apaixonada por você’.
A Diana foi morar em casa quando tinha 3 anos e meio. Já conhecia o ambiente, a família, a rotina e queria ficar ali. Depois de alguns anos, passou a insistir para que eu engravidasse. Sempre achei que ter um irmão com uma origem distinta da dela seria um incômodo, preconceito meu, não dela. Tentamos novamente, foi uma gravidez cercada de insegurança, com a Diana cuidando de mim o tempo todo, e hoje ela é louca pelo irmão. Com orientação psicológica para ajudar, com amor e paciência, todos os traumas dela vêm sendo superados."
QUEM ADOTAA maioria (39%) tem entre 41 e 50 anos, está em São Paulo (26%), é casada (81%), não tem filhos biológicos (75%) e tem renda de 3 a 10 salários mínimos (45%) por mês
QUEM ADOTA QUER
Apenas 1 criança (84%), indiferentemente do sexo (58%)
Fonte: Revista Lola
"Não é carne nem o sangue, é o coração que nos faz pais e filhos", escreveu o filósofo alemão Friedrich Schiller. A seguir, histórias de mulheres que adotaram crianças mais velhas, enfrentaram os desafios da decisão - e mostraram que mãe de verdade é a que tem amor para dar
O desejo de formar uma família, de educar e de acompanhar o desenvolvimento de uma criança, às vezes, resulta em um processo de adoção que envolve um caleidoscópio emocional. Principalmente quando a criança já é um pouco mais velha - ou pelo menos crescida o suficiente para ter algum repertório. Na maioria das vezes, o novo filho chega moído pelas dores do abandono. Eventualmente, chega com traumas de maus-tratos. É um drama tão naturalmente cinematográfico que volta e meia o cinema recorre a ele. O filme Ensinando a Viver (2007), por exemplo, é inspirado no conto de David Gerrold, escritor americano que adotou um menino de 8 anos e narra a saga pessoal de um pai para garantir segurança ao filho. "Sean foi abandonado com 1 ano e meio. Já havia passado por oito abrigos. No dia em que fui conhecê-lo, disseram sem rodeios que ele não seria uma criança fácil de ser educada. Tinha sofrido abusos emocionais. Mas eu o vi como um menino desesperado para ter um lar seguro", disse Gerrold a LOLA, em um resumo perfeito do desafio doméstico que envolve essa decisão. E, justamente por isso, encarar a missão de adotar um filho já crescido ainda é arranjo incomum. No Brasil, a preferência pelos bebês e crianças menores é avassaladora. Dos 26 736 inscritos no Cadastro Nacional de Adoção (CNA), 78% (20 775) desejam crianças de até 4 anos. Acima de 3 anos, elas são enquadradas na categoria "adoção tardia". Alguns assistentes sociais e psicólogos defendem o fim do termo, por entender que ele reforça o preconceito em relação às crianças maiores. Mas o fato é: preconceito ou não, há um desafio pela frente. Mães e pais aprenderão a ser mães e pais, as crianças terão de se adequar a uma nova realidade. Muitas vezes não dá certo. Toda adoção, quando promulgada, é irrevogável - portanto, a lei não permite a devolução da criança após a sentença. Mas existe um período inicial, o estágio de convivência, em que é possível fazer a "restituição".
Qualquer caso de devolução é acompanhado pela Justiça - e a guarda só pode voltar para o Estado nos casos em que fica evidente o risco de a criança permanecer em um núcleo familiar que a rejeita. É, obviamente, uma situação de alta voltagem dramática. Autora de uma dissertação sobre o tema, defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a psicanalista Maria Luiza Ghirardi elenca as principais causas que desembocam em um final infeliz. Há as expectativas extremadas, impossíveis de cumprir, em relação à adoção. Há as dificuldades de lidar com a origem da criança. Há a adoção motivada por sentimentos equivocadamente altruístas, para "salvar" aquela criança. Há a dificuldade de sentir a criança como filha. E, finalmente, há a dificuldade de lidar com a infertilidade. "As devoluções ocorrem sem que necessariamente fiquem restritas à adoção tardia. Há casos em que a criança foi adotada ainda bebê e devolvida na adolescência", conta ela. Mas nem tudo são relatos sombrios. Há muitas histórias de pais que começam querendo um bebê e, ao conhecer a realidade dos abrigos, optam por uma criança grande. Apesar de todos os conflitos, a convivência se ajeita com o tempo, como mostram os quatro depoimentos a seguir.
Luciana Marques, 40 anos, administradora de empresas
"Casei em 2000, mas não quis ter filhos imediatamente, quis priorizar meu casamento e minha carreira. O desejo de ser mãe surgiu só cinco anos depois, mas não consegui engravidar. Tentei técnicas de fertilização várias vezes sem sucesso - e a ideia da adoção foi amadurecendo. De cara, eu sabia que não queria um bebê: não me imaginava com ele nas mãos, trocando fraldas, passando noites em claro sem saber o que ele está sentindo. Mas também não me imaginava adotando três crianças, como aconteceu: Alexandre, de 10 anos, Thaiane, de 8, e Kaio, de 3. Pensava, no início, em adotar uma criança de até 4 anos, mas tudo mudou nos três anos que levou da entrega dos documentos à aprovação da habilitação da Vara da Infância e Juventude. Li muito e passei a frequentar um grupo de apoio. No abrigo, vi que as crianças maiores também poderiam me chamar de mamãe, que precisam de atenção, afeto, amor. Ali, vi a possibilidade de formarmos uma nova família.
Em fevereiro de 2009, chegaram meus filhos. No primeiro mês, quase pirei. Eles não confiavam na gente, nos testavam o tempo todo. Se a própria família biológica não os protegeu, e essa era a única referência familiar que tinham, como confiariam em dois adultos desconhecidos? Isso sem falar no brutal choque cultural. Os dois maiores não sabiam os dias da semana, os meses do ano, a própria data de aniversário. Não eram alfabetizados, não tinham as vacinas obrigatórias. Nunca tinham ido a um dentista ou médico. Meu filho mais velho acordava às 5 da manhã para comer o que encontrasse na cozinha e na geladeira (frutas, iogurtes, queijo, bolo etc). Tinha medo de que a comida acabasse. Não adiantava explicar que depois faríamos novas compras. A escola também não foi fácil. Antes de matriculá-los , começamos a dar aulas para eles, especialmente minha mãe, professora aposentada. Quando a Thaiane errava alguma coisa, se enfiava embaixo da mesa, chorando. A autoestima dela era tão baixa que não se permitia errar.
Hoje, os dois mais velhos estão alfabetizados, têm um ótimo comportamento na escola, tiram boas notas, são considerados inteligentes e aplicados. Fazem curso de reforço escolar e inglês. Meu marido é economista e dá aulas de matemática para eles. O caçula não falava, era praticamente mudo. Hoje, ele é uma criança encantadora e um tagarela sem igual. Às vezes, preciso falar para ele parar um minuto e respirar. A mudez era uma forma de defesa diante dos traumas que viveu.
Nós cinco fazemos terapia desde o primeiro dia. Também acompanhamos as reuniões no Grupo de Apoio à Adoção Quintal da Casa de Ana, em Niterói, com outros pais. Devagar como deve ser, eles estão tirando a diferença emocional, cultural. Não existe fórmula mágica para lidar com essa situação, é um desafio que exige paciência e muito amor. Foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. Não consigo me ver sem os meus filhos. Não nasceram de mim, mas com certeza nasceram para mim."
"Depois de uma ‘gravidez’ de 3 meses, gêmeos"
Glaucia Regina Levendoski, 39 anos, advogada
"Logo após o casamento, eu e meu marido já pensamos em ter nossos filhos. Poucos meses depois, descobrimos que não poderíamos gerar, naturalmente, um bebê.Descartamos as técnicas reprodutivas e decidimos pela adoção. Meu marido queria apenas uma criança, mas eu sonhava com pelo menos duas. Foi uma negociação antes de preenchermos os dados para dar entrada ao processo, mas ele aceitou a ideia de gêmeos. Ainda não havia o Cadastro Nacional de Adoção, por isso tive de mandar cópias de nossa habilitação para comarcas de todo o país. Trocava e-mails em blogs, conversava com pessoas, frequentava encontros sobre adoção.
Meu único problema foi não saber quanto tempo duraria minha ‘gravidez’. E se preparávamos um quarto para um ou dois bebês ou para uma ou duas crianças. Não sabia se comprava um berço ou uma cama... Um belo dia, recebemos uma ligação do fórum: um casal de gêmeos de 3 anos e meio estava entrando em processo de adoção. Fui ser mãe de uma hora para outra de Fernanda e Fernando. Do dia para noite, passamos da condição de um casal para uma família. Minha ‘gestação’ foi de apenas três meses, do processo de habilitação à chegada de nossos filhos. Eles, praticamente, não conheciam nada além do abrigo. Ficavam impressionados até com o portão elétrico de casa. Na primeira vez que fomos ao cinema, se assustaram com o barulho.
Apesar desses estranhamentos, eles chegaram praticamente adaptados. Em nenhum momento me senti insegura. Hoje, estão com 6 anos de idade. Brincam, estudam, brigam, se alegram, se entristecem, como todos as outras crianças da idade deles. Deixei de ter uma casinha arrumada para ter uma casa feliz!"
"Eu tinha medo, as crianças também"
Mariana Martins, 33 anos, analista financeira
"Minha vontade de ser mãe era grande, sonhava em ter um filho biológico e um adotado. Após cinco anos tentando engravidar, chegando a me submeter à técnica de inseminação artificial, decidimos realizar o desejo da adoção. Preenchemos o cadastro, informando que não tínhamos restrições em relação ao sexo e à raça, mas queríamos crianças de até 1 ano de idade, e irmãos, só se fossem gêmeos.
Com o tempo e as experiências trocadas nos grupos de apoio à adoção, entendemos que não é essa a realidade dos abrigos do país. Fomos ao fórum e modificamos nosso cadastro: aceitávamos crianças maiores de 2 anos e com irmãos de até 7 anos. Chegamos a lidar com a frustração de nos empolgar com três irmãos no Rio de Janeiro, adoção que não deu certo por questões judiciais. Após um mês, nova ligação do fórum. Receando uma nova decepção, fomos, num sábado de 2009, conhecer duas irmãs: a mais velha, de 6 anos, e a caçula, de 3. Nos apaixonamos por elas. Passamos o domingo juntos e, na noite da segunda-feira, elas já estavam morando em casa, sem ‘estágio’, sem nada!
De repente, me vi totalmente despreparada. Não tínhamos cama, chupeta, mamadeira, fraldas, roupas... Fiquei alucinada, perdida. As meninas chegaram com piolhos. Não fazia a menor ideia do que fazer! Minha mãe veio me ajudar, eu me senti muito insegura. Medo era o sentimento mais presente. Medo de não dar certo, de elas não gostarem de mim, de minha relação com o marido estar mudando, do futuro... Compramos iogurtes e todas as guloseimas que as crianças adoram. Mas elas nunca tinham visto nada parecido, estranhavam tudo. Acabei tendo de jogar fora muita coisa. A menor chamava a maior de mãe. E a maior não agia como uma criança, tinha medo de brincar. O papel dela, até então, era cuidar da irmã. Um dia, a caçula fez cocô no biquíni, ela pegou-o na mão e o escondeu. Morria de medo que eu ficasse brava e não quisesse mais ficar com elas. Fazia tudo para nos agradar.
Fomos mostrando e dando a segurança para elas de que tudo estava dando certo. No começo, a maiorzinha não aceitava carinho, não conseguia de jeito algum dar um abraço, um beijo em mim e no pai. Só com o passar do tempo despertou a verdadeira menina, que é carinhosa, meiga, sensível e sempre alto-astral. Ela não sabia ler nem escrever. Levamos um mês para decidir o que faríamos. Foi complicado achar uma escola, pois ela estava atrasada em relação às outras crianças da mesma idade. Mas as duas sempre foram muito educadas. Sei dizer que está sendo a melhor experiência de nossas vidas. Amadurecemos e nos sentimos extremamente felizes com essa oportunidade de cuidar dessas joias que estão conosco."
"Tô tão apaixonada por você"
Maria Rita Serrano, 42 anos, bancária
"A adoção da minha filha foi um processo natural - foi paixão à primeira vista. Em 2001, eu era vice-prefeita e secretária da área social de Rio Grande da Serra, na Grande São Paulo. Sob minha responsabilidade, estava o abrigo para crianças em situação de risco. Naquele ano, a Diana, de 1 ano e meio, foi abrigada, após o conselho tutelar encontrá-la abandonada na rua. Foi um caso muito especial. Ela chorou muito nos primeiros dias e se recusava a ficar com as cuidadoras. Tivemos de deslocar um guarda municipal para cuidar dela. Depois, soubemos que esse comportamento era decorrente dos maus-tratos da progenitora e dos cuidados que ela recebia de um morador de rua, por quem criou um forte vínculo afetivo.
Passados alguns meses, pedi autorização da juíza da Vara da Infância para poder levá-la para passear nos fins de semana. Eu estava no início de uma gestação, mas perdi o bebê. Em 2003, engravidei e, pela segunda vez, perdi o bebê, o que só fez aumentar meu desejo pela adoção da Diana. Quando ficou claro que a paixão era mútua, entrei com o pedido de guarda e o processo de adoção, efetivado cinco anos depois. Um dia, perguntei se ela gostaria de morar conosco e a resposta veio com um sorriso e a frase: ‘Tô tão apaixonada por você’.
A Diana foi morar em casa quando tinha 3 anos e meio. Já conhecia o ambiente, a família, a rotina e queria ficar ali. Depois de alguns anos, passou a insistir para que eu engravidasse. Sempre achei que ter um irmão com uma origem distinta da dela seria um incômodo, preconceito meu, não dela. Tentamos novamente, foi uma gravidez cercada de insegurança, com a Diana cuidando de mim o tempo todo, e hoje ela é louca pelo irmão. Com orientação psicológica para ajudar, com amor e paciência, todos os traumas dela vêm sendo superados."
QUEM ADOTAA maioria (39%) tem entre 41 e 50 anos, está em São Paulo (26%), é casada (81%), não tem filhos biológicos (75%) e tem renda de 3 a 10 salários mínimos (45%) por mês
QUEM ADOTA QUER
Apenas 1 criança (84%), indiferentemente do sexo (58%)
Fonte: Revista Lola