Mais de 600 crianças e adolescentes aguardam por uma família no Paraná
Quando a psicóloga Dorothy Kahl e o
marido, o fotógrafo Aldo Rempel, optaram pela adoção, a ideia era tornarem-se
pais de dois irmãos, já um pouco mais velhos, sem restrições quanto a
características físicas, como cor ou sexo. "Entregamos pra Deus, pois
sabíamos que Ele ia nos dar os filhos certos", conta a mãe. No momento em
que recebeu a notícia de que havia duas crianças aptas para adoção, o casal não
quis vê-las primeiro para depois tomar sua decisão: "Já tínhamos combinado
que, quando tocasse o telefone, seriam os nossos filhos, independente de
qualquer coisa. Não era necessário ver nada". Foi assim que em 2009 os
dois adotaram dois irmãos, de três e quatro anos de idade.
No mês em que se comemora o Dia
Nacional da Adoção (25 de maio), o Ministério Público do Paraná propõe que
histórias como a de Dorothy e Aldo se repitam, para que, cada vez mais, grupos
de irmãos, crianças mais velhas, adolescentes, negros, dentre outros perfis
excluídos pela maioria dos pretendentes à adoção, possam encontrar suas
famílias. Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há 33,5 mil
inscritos no Cadastro Nacional de Adoção e 5,7 mil crianças e adolescentes
aptas a serem adotadas. Logo, se considerarmos a existência de mais de cinco
famílias para cada criança, é preciso entender por que a conta não fecha.
De acordo com a promotora de
Justiça Beatriz Spindler Leite, da 2.ª Vara da Infância e da Juventude de
Curitiba, a maioria das crianças e adolescentes aptos à adoção não possui
pretendentes interessados, porque grande parte dos habilitados quer adotar
crianças de zero a três anos, de cor branca, do sexo feminino e sem problemas
de saúde – perfil quase não encontrado nas entidades de acolhimento. Na
Promotoria de Justiça em que atua, por exemplo, Beatriz não acompanha, no momento,
nenhuma criança apta à adoção que atenda a todos os requisitos do perfil
preferencial, que também exclui negros, grupos de irmãos e pessoas que, apesar
de apresentar problemas de saúde tratáveis, demandam cuidados especiais.
A 2.ª Vara da Infância e da
Juventude acompanha casos de 94 crianças e adolescentes aptos à adoção em
Curitiba. Desses, 79 possuem idade entre 12 e 18 anos e 15, entre seis e 12
anos. Em âmbito estadual, a realidade não é muito diferente: conforme
informações do CNJ, dos 653 aptos à adoção no Paraná, apenas 45 (6,9%)
encontram-se na faixa etária mais solicitada pelos pretendentes, ou seja, até
os três anos.
Filhos ideais x filhos reais –
"O grande problema do processo adotivo é a idealização da filiação",
destaca a promotora de Justiça. "A maioria dos habilitados sonha em adotar
a criança perfeita, mas se esquece de que, na adoção, assim como na gravidez
biológica, há riscos – sejam eles previsíveis ou não –, que são inerentes ao
processo parental". Essa é também a opinião de Dorothy, que, dois anos
depois de adotar os meninos, inesperadamente, tornou-se mãe de uma menina, de
um ano de idade. Ela conta que Aldo foi à Vara da Infância e da Juventude
apanhar alguns documentos das crianças, quando recebeu a notícia de que os meninos
tinham uma irmã que estava apta para adoção. A psicóloga não teve dúvidas e em
segundos decidiu: "Se é irmã dos meus filhos, é minha filha também".
Dorothy afirma que nunca teve
receio em adotar sem determinar um perfil. "Quem me garante que o filho biológico
não terá déficit de atenção, depressão, usará drogas? Filho dá trabalho e, em
algum momento, vai trazer preocupações", destaca. Ela também afirma que
muitas pessoas têm medo da influência que o comportamento dos pais biológicos
pode exercer no caráter da criança, mas Dorothy discorda da ideia de haver uma
questão de determinação ou destino. "Se a mãe biológica dos meus filhos
tiver sido usuária de drogas, isso não quer dizer que eles também serão",
exemplifica.
Assim como Dorothy, a promotora de
Justiça pontua que a criança ou adolescente adotado pode vir a apresentar
problemas, mas nada além do que ocorreria com uma criança gerada no próprio
ventre. No entanto, ela afirma ser comum a rejeição da pessoa que possui uma
característica não idealizada, o que vai contra a necessidade fundamental de
aceitação plena e de um verdadeiro comprometimento afetivo em um processo de
adoção. "Não se trata de um discurso de amor incondicional, mas da
vivência diária desse amor incondicional. É estar disposto a entregar-se
afetivamente a uma criança ou adolescente, apesar de todas as dificuldades e
resistências que surgirão no dia a dia. Esse é o exercício da maternidade e da
paternidade, sejam elas oriundas da via biológica ou da via adotiva",
reflete Beatriz.
O porquê da espera – Em um processo
adotivo, as reclamações em relação à demora são comuns. Contudo, o procurador
de Justiça Murillo José Digiácomo, do Centro de Apoio Operacional das
Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente e da Educação, esclarece
que, se os pretendentes estiverem dispostos a adotar crianças e adolescentes
fora do perfil preferencial, o processo é rápido. "Uma vez que a criança
está apta à adoção, a espera do habilitado dura, em geral, menos que uma
gestação. O que ocorre é que muita gente quer adotar um perfil de criança que
as entidades de acolhimento não têm", afirma Murillo.
Para Dorothy, por exemplo, a adoção
dos filhos foi rápida: todo o processo durou menos de dez meses. Os meninos
foram adotados em 2009, com três e quatro anos de idade, o que na época,
segundo a mãe, era considerado adoção tardia e estava fora dos padrões de
perfil visados pelos pretendentes. "Não era comum a adoção de irmãos, nem
de crianças mais velhas. Então imagino que por isso foi tudo muito rápido."
Dados da 2.ª Vara da Infância e da
Juventude de Curitiba mostram que as restrições colocadas pelos pretendentes
podem contribuir para que o processo de adoção seja demorado. Para se ter uma
ideia, na capital, dos 303 habilitados a adotar, 177 não aceitam grupos de
irmãos e 13 possuem restrição ao uso de drogas pelos genitores da criança. Há
também pessoas que não aceitam crianças com histórico desconhecido ou de abuso
e a maioria daquelas que já possui filhos prefere não adotar crianças mais
velhas que os filhos biológicos. Além disso, 295 não aceitam crianças e
adolescentes com deficiência ou doença grave, sendo que apenas seis
pretendentes não colocam restrições nesse sentido.
Critérios – O procurador de Justiça
Murillo Digiácomo lembra ainda que são comuns as reclamações relativas à
burocracia do processo adotivo. Porém, ele afirma que isso é fundamental, pois
é importante fazer uma análise criteriosa da motivação dos pretendentes à
adoção e de seu preparo, sobretudo do ponto de vista emocional, para as
responsabilidades presentes e futuras da adoção. "Ninguém deixa um filho
com um estranho por cinco minutos que seja. Com essas crianças e adolescentes a
situação é a mesma. O poder público precisa ter certeza de que quem irá
adotá-los tenha estrutura emocional, moral, enfim, um conjunto de condições que
habilite o pretendente a recebê-los, até porque a adoção é para toda vida,
sendo a única medida irrevogável prevista no Estatuto da Criança e do
Adolescente", ressalta.
A promotora de Justiça Beatriz
acrescenta que há um sistema legal, que não pode ser desrespeitado. Ela explica
que, para crianças e adolescentes estarem aptos à adoção, as tentativas de
mantê-los na família nuclear (em geral constituída por pai e/ou mãe) devem ser
esgotadas. Caso isso não seja possível, é preciso avaliar a possibilidade de
inseri-los em sua família extensa (pessoas próximas ligadas à criança por
parentesco ou laço familiar). Se não houver êxito em nenhuma dessas tentativas,
inicia-se a destituição do poder familiar, processo que deve seguir todos os
trâmites legais, que demandam tempo. "Mas a partir do momento em que a
criança está apta à adoção e se o pretendente habilitado não apresenta restrições
de perfil, o processo é rápido", reforça a promotora de Justiça.
Laços de amor – Para a jornalista
Adriana Milczevsky, mãe de dois meninos, de dois e nove anos de idade, as
pessoas que optam pela adoção devem desejar um filho real. "É preciso
querer ser pai e mãe e receber o seu filho do jeito que ele é e não do jeito
que você quer que ele seja", afirma.
Adriana conta que, quando ligaram
da Vara da Infância e da Juventude perguntando se ela e o marido tinham
interesse em conhecer uma criança, ela respondeu: "Só quero saber o
nome". Para a surpresa do casal, o menino tinha o mesmo nome de seu novo
pai: Marcelo. "Quando ouvi isso, não quis saber se a criança era branca ou
negra, se era fisicamente perfeita ou não. Deus falou comigo em letras",
diz Adriana. Essa história aconteceu em 2010, ano em que Adriana e o marido
adotaram Marcelo (9), na época com 4 anos. Segundo a jornalista, eles eram
considerados um casal fora do padrão em relação à maioria dos pretendentes, já
que há cinco anos não se falava em adoção de crianças com idade acima de 3
anos.
Assim como aconteceu com Dorothy e
Aldo, Adriana e Marcelo não esperaram seu filho por muito tempo. "O
processo não foi longo", ressalta a jornalista. "Acredito que, por
não termos restringido o perfil, o Marcelo chegou em menos de um ano, a partir
do momento em que saiu a nossa habilitação para adotar." Passado um ano e
meio da adoção de Marcelo, em 2012, o casal recebeu outra ligação e, novamente,
só interessava a eles saber o nome. Daquela vez, quem estava à espera de uma
família era um bebê de 34 dias, com o nome de João Marcelo (hoje com dois
anos). "Não preciso dizer mais nada, né?", indaga Adriana, que nunca
havia pensado que seria mãe de um bebê.
A jornalista é da opinião de que,
se a pessoa restringe muito o perfil da criança que quer adotar, reduz também
as chances da chegada do filho. Para ela, os futuros pais devem estar dispostos
a receber o filho real, que muitas vezes não é o bebê ou não é a menina.
"A criança também sonha com um pai e uma mãe ideal, mas quem garante que
eu fui a mãe sonhada pelos meus filhos? Aos poucos, com a convivência, as
coisas vão acontecendo e percebemos que o vínculo que realmente importa é o
laço de amor."
Os personagens da matéria são
voluntários da ONG Adoção Consciente, que tem o objetivo de preparar as pessoas
interessadas em adotar uma criança ou adolescente para receber seus filhos. A
ONG tem como foco incentivar os pretendentes a adotar crianças que hoje estão
fora do perfil determinado pela maioria deles.