DEVOLUÇÃO AFETIVA





Por Guilherme Lima Moura


Poucas notícias podem nos chocar mais do que as que nos informam sobre o abandono de um filho. Costumam causar comoção pública, não raro despertando em muitos um súbito desejo de tomar o pequenino indefeso aos braços através da adoção. Eis que, de repente, a criança passa a contar com incontáveis candidatos a pais. Esses, por sua vez, movem-se na direção da filiação pelo impulsivo desejo de proteger, de ajudar, de salvar o inocente.

Embora nos pareça absurdamente desumano, o abandono de filhos é muito mais comum do que gostaríamos de admitir. Tal a impressionante frequência com que ocorre, trata-se de fenômeno, como diria Nietsche, “demasiado humano”. Como não poderia deixar de ser, a adoção não está livre desse fenômeno humano, de cuja especificidade nasce uma variante ainda mais dolorosa: a devolução de filhos adotivos.

No caso das tristes histórias de devolução de filhos adotivos, o sofrimento se multiplica porque adiciona à história da criança mais uma experiência de perda afetiva. Dá-lhe, eventualmente, a sensação de certa incompetência no fazer-se amada, nem sempre superada ao longo dos anos que lhe advirão. E, embora a sentença judicial caracterize-se pela irrevogabilidade da adoção, a devolução geralmente é aceita pelo judiciário como alternativa a uma situação familiar insustentável.

Em nosso último encontro do Gead Recife, tivemos a oportunidade de ouvir a instrutiva palestra de Edineide Silva, coordenadora do Núcleo de Adoção da 2ª Vara da Infância e Juventude do Recife, sobre esse tema tão delicado. Embora uma história familiar não possa ser prevista em seu sucesso ou insucesso, a experiente psicóloga nos falava de alguns indicadores de risco eventualmente identificados nas conversas com alguns pretendentes a pais adotivos.

De modo geral, inspirados pelo debate que se seguiu à palestra, entendemos que o risco do insucesso na construção da filiação adotiva reside fundamentalmente no mal-entendido acerca do que é o fazer-se pai/mãe e de como ele deve se realizar pela via da adoção. É preciso entender que a adoção não é um meio para “salvar crianças”; para conseguir um substituto do filho precocemente falecido; para obter uma companhia ou um ajudante ante a velhice futura.

A adoção é simplesmente um caminho para se ter um filho. Nenhuma relação saudável nasce de expectativas descabidas acerca da ação do outro. Quem surge na nossa vida para ser nosso filho traz consigo todas as possibilidades humanas que o tornam único. Queiramos ou não, ele não existe para atender às nossas projeções. Portanto, no campo da verdadeira filiação, a construção afetiva ocorrerá sempre no amor que orienta e deseja o melhor, mas que também entende que o melhor do outro pode não ser o nosso melhor.

A busca pela adoção, portanto, precisa estar baseada simplesmente no desejo de ter um filho e no entendimento de que esse desejo não depende da gestação biológica. Nesse contexto, deve ser respeitada a legítima necessidade dos pretendentes de construírem sua condição de pais a partir de determinada faixa etária dos futuros filhos. O entendimento de que a filiação pode ser construída em qualquer idade, como tem ocorrido amplamente, deve encontrar par na maturidade emocional de cada um.

Desse modo, “a conta que não fecha” (mais pretendentes do que crianças no cadastro nacional da adoção e, ainda assim, inúmeras crianças que não conseguem ser adotadas), não pode precipitar candidatos a pais a viverem uma experiência para a qual não estão emocionalmente prontos. Se sentem que precisam vivenciar sua história de pais com um bebê, melhor aguardar mais na fila do que “se contentar” com um filho para o qual não será oferecido verdadeiramente um lugar de filho.

Então, refletindo sobre o delicado tema da devolução e abandono de filhos, pensamos: acontecerão apenas nos dramáticos casos das célebres crianças abandonadas e das adoções mal-sucedidas?

Não é difícil concluirmos que, entre o recém-nascido largado à própria sorte e a criança devolvida ao Estado, há também uma espécie de “devolução simbólica” que é feita sutilmente todos os dias em inúmeros lares. São as devoluções afetivas. Já que pais biológicos “não têm para quem devolver” seus filhos, aqueles que não se tornaram efetivamente pai e mãe terminam por lhes oferecer a verdadeira orfandade, da qual temos falado: a que surge do abandono afetivo (com ou sem a ausência física).

A má notícia é que essa devolução afetiva, infelizmente, é ainda mais humana do que imaginamos. Está a nossa volta e nos mostra mais uma vez que o que define a filiação não é o vínculo biológico, tampouco a adoção ausente de atitude adotiva. Pais e filhos só se constituem enquanto tais pelo afeto. O mesmo afeto que, em outros contextos, define as verdadeiras amizades e sustenta as relações conjugais duradouras.

A boa notícia é que a atitude adotiva, felizmente, é uma força tão poderosa que faz surgir pais e filhos onde antes só havia sofrimento. É o que demonstram tantas belas famílias adotivas que, pela amorosidade em que se realizam, transformam cotidianamente em cicatriz a dolorosa chaga do duplo abandono.

Fonte: Portal Ne10


1 Response
  1. Flavia Says:

    Eu acompanhei a "devolução" de uma criança, foi um dos atos mais brutais que vi na minha vida. Por sorte, e Deus é tão poderoso que já tinha uma outra família de braços abertos para esta criança.